Wednesday, May 17, 2006

OPINIÃO

Não vou morrer na minha quitinete
MÁRIO BORTOLOTTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ordem agora é morrer nas próprias casas. Uma das frases que mais me marcaram nas últimas semanas foi justamente a frase dita por Sara Joanna Gould, uma americaninha de 21 anos que tá fazendo intercâmbio no Brasil. Ela falou pra Revista da Folha: "O que me surpreende não é a pobreza, comum na América Latina, mas sim a riqueza, o número de milionários em um país como o Brasil".
Sacaram? Vocês que agora estão escondidos em suas casas, com medo de saírem às ruas pra tomar uma inocente cerveja ou pra ir a um cinema depois de um dia cansativo de trampo e pavor? Vocês sacaram que isso que vocês estão passando nesse momento é rotina nas favelas cariocas? O toque de recolher, o abaixar as portas, o rezar baixinho pra que ninguém ouça. Às vezes tão baixinho que nem Deus ouve.
E a gente faz de conta que tá acontecendo longe daqui, num país distante de alguma fábula de terror. E agora você tá vendo os busões incendiados, as estações de metrô metralhadas, e você tá dentro do trem fantasma.
E você pergunta pra mim o que eu penso disso? Eu não sou político, não faço parte de nenhuma igreja, não sou banqueiro nem empresário. Não lucro com nenhuma espécie de proibição. Mas tem gente lucrando, não tem? O pouco dinheiro que ganho trabalhando é pra pagar as contas e comprar livros. E você vem perguntar pra mim o que eu acho disso? Você acha que isso aí é só uma guerra de polícia e bandido?
Faz a autópsia da situação, brother. Com atitudes meia-boca não vai acontecer nada de fato. Não vou gastar meus 1.600 toques com palavrório empolado. Libera tudo, meu irmão, divide o bolo, libera as drogas, a pirataria e a putaria, deixa todo mundo trabalhar livremente e ser o dono de suas próprias vidas.
Oportunidade pra todo mundo melhorar de vida. Iguala as condições pra batata não assar. Mas é claro que isso não vai acontecer, não é? Então não perguntem pra mim o que acho disso. Nunca perguntem para alguém libertário como eu o que acho de algo assim. Você tá com a bunda no inferno e quer manter a dita refrigerada?
Eu tô em casa, mas prefiro optar por não morrer aqui. Ainda posso fazer isso. Vou sair pra tomar uma cerveja. Se eu ainda tivesse um pai, arrastava ele comigo. Meu nome é Mário Bortolotto e não existe nada de que eu goste mais do que um pingado e um pão com manteiga depois de uma noite de sinuca.



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Mário Bortolotto é dramaturgo, diretor de teatro e ator

Friday, May 05, 2006

“Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente e se pensa. Se em certa conversa tivesse tido as frases que só agora, no meio do sono elaboro...”

Escrever me incomoda, não posso ser as palavras. Eu queria almoçar essas palavras, no mínimo, mesmo não sendo muito, mas o máximo que ainda me permito é almoçar com essas palavras. Perguntei ao meu estômago se eu o incomodo. Baixinho, pra não incomodar. Isso me é indiferente, hoje. A resposta me pareceu um ponto final na minha narrativa, se é que ele ouviu a minha pergunta. Se eu não te incomodo, que diferença faz continuar. Ele respondeu, Suas palavras não são ruins, talvez um pouco doces demais. Tenho certeza de que ele está cheio de mim, mas o nome doce era pequeno demais pra me enjoar da conversa, porém era o que ele dizia, e não vejo que interesse ele poderia ter de estar mentindo a respeito, evidentemente nunca se sabe. Por mais que eu estivesse pouco à vontade com os mistérios das minhas entranhas, perguntei se era possível ilustrar melhor a sua percepção, com algum exemplo. Ele pediu, se é que eu ouvi direito, que eu descrevesse o que acabara de engolir no almoço, bastante satisfeita. Até então eu estava igualmente satisfeita quanto a conversa, mas quando fui convencida a fazer um exercício de memória palatar, confesso que senti preguiça. Não tenho nada contra comer, quando estou comendo. O cheiro da berinjela, e aquela sensação de que suas sementes vão se misturar com o arroz, só me dão prazer, durante a degustação. Se me surpreendo em processo de recordação, já estou pensando como é que se escreve shoyu, o que faz muita diferença pra quem quer se esquecer, como eu, de que seu cheiro outrora forte e saboroso, pode ter tomado outras proporções dentro de mim. Não falei nada do kibe, porque ainda estou presa no que pode haver de doce nessas palavras. Vamos lá, sr. satisfeito cheio, a minha parte está feita, estão aí acima, meus breves escritos, minhas impressões sobre o meu almoço.



(ele)Se você não fala do que come, não comerá o que fala. Mal têm tempo de decantar o que pôs goela abaixo e já lhe causa asco!



(eu)Ah, não me venha com lições, não há nada mais generoso e doce que conselhos gástricos.



(ele)urrr



Ouvi um dinossauro e se não foi uma resposta torta que eu estufe. Costumo denominar de “dinossauro” todas as interjeições advindas do aparelho digestivo. E foi assim que passei a tarde. Quando estava em atividade, não os ouvia graças aos outros ruídos. Mas assim que o silêncio encostava no meu ombro, ouvia-os de novo, cada vez mais fracos, certamente, mas que diferença faz que um grito seja fraco ou forte? O que é preciso é que ele pare. Enquanto isso, seguia eu, respondendo, doce e ocasionalmente, a quem encontrava na rua. Estou bem, estou feliz da vida.

vômito de hoje, helena